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O sonho de um amanhã melhor

Fonte

Correio Braziliense FTP - Impresso - Flip

Sentimento

Neutro

Valoração

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Data Publicação

25/12/2024

00:00h
Sonhar e transcender a realidade. Uma oportunidade para entrar em contato com desejos mais profundos, individuais ou coletivos. Alguns deles, acessados somente durante o sono, quando o estado de vigilia da uma tregua a realidade, as vezes dura do dia a dia.



Refletindo sobre a potencia do sonhar, o Correio teve o privilegio de entrevistar brasilienses movidos por esse conjunto de imagens e pensamentos que os movem diariamente. E assim conheceu Marcia, Marilucia e Adriana, tres mulheres potentes e batalhadoras, e as abordou com a seguinte pergunta: se pudesse pedir qualquer coisa, qual sonho seu pediria para o Papai Noel realizar? As respostas voce acompanha agora.



A cura para o cancer

Os sonhos movem a vida de Marcia Renata Mortari desde muito cedo. Em um Natal, por volta dos 12 anos, ganhou um kit alquimia daqueles que voce mistura os liquidos e eles mudam de cor. Ali, se imaginou uma grande cientista, vestida de jaleco branco agitando componentes e fazendo descobertas.



Hoje, aos 47 anos, a mineira de Itabirito e exatamente a cientista que sonhou, com jaleco branco e tudo o que tem direito. Marcia formou-se em biologia, e doutora em neurociencias, professora da Universidade de Brasilia (UnB) e uma pesquisadora respeitada. E casada com Mauricio e juntos eles cuidam dos quatro filhos: Gustavo, 23, Julia, 17, Gabriel, 16, e Laura, 9.



Ha pelo menos tres decadas ela se dedica a descobrir como transformar o veneno do marimbondo em medicamentos para doencas degenerativas como Alzheimer, Parkinson e Epilepsia. “Conseguimos um composto capaz de reduzir e ate abolir epilepsia em caes. Ele tem um efeito neuroprotetor que deixa os animais mais dispostos para brincar. Agora estamos esperando aprovacao para ser comercializado”, conta.



Em relacao as doencas de Alzheimer e Parkinson, a meta e conseguir produzir um spray nasal capaz de impedir a progressao da doenca e trazer alivio aos pacientes. Os testes foram realizados em animais e estamos verificando a seguranca do medicamento para futuros testes em humanos.



Ha dois anos, a complexidade da vida impos um novo sonho a Marcia a partir de um drama pessoal e familiar. Diagnosticada com cancer de mama, ela enfrentou os impactos emocionais e fisicos do tratamento para combater o tumor. “Ali eu decidi: eu preciso fazer algo para a cura da doenca e melhorar a eficacia do tratamento tornando-o menos nocivo para as mulheres. E minha vinganca pessoal contra o cancer”, conta.



E assim ela fez. Voltou ao laboratorio, debrucou-se sobre o banco de dados construido ao longo de mais de 30 anos de pesquisa com marimbondo e desenvolveu um medicamento inedito inspirado no veneno do inseto e, em parceria com um laboratorio, fez testes no tumor subtipo responsivo e no triplo negativo com sucesso. “Ele seleciona as celulas tumorais das sadias matando as doentes. Isso reduz os efeitos adversos do tratamento”, explica.



A primeira pessoa para quem Marcia contou a descoberta foi Mauricio, o marido dela. “Liguei imediatamente para ele. Mandei o resultado para os meus medicos e sai correndo pelos corredores da universidade comemorando a descoberta”, relembra.



E os sonhos de Marcia se renovam dia a dia. “Quero ver a cura para o cancer. No meu tratamento, eu e meu marido tinhamos uma frase: ‘O amor nao adoece.’ Quero que a sociedade veja os cientistas como parte dela. Nos sofremos os mesmos desafios. Minha paixao e servir a sociedade e vencer tudo o que esta posto a nossa frente.”



Independencia financeira

E diante de uma maquina de costura — que quebra um dia sim e o outro tambem — que a piauiense Marilucia Gomes de Sousa, 49 anos, vislumbra o futuro. Para quem passou dois anos de cama com depressao profunda, crises de ansiedade e descobriu uma fibromialgia ser capaz de sonhar como amanha e uma vitoria.



Nascida em Buriti dos Lopes, uma cidade com 19,6 mil habitantes, Marilucia chegou ao Distrito Federal com 15 anos. Trabalhou como domestica, em restaurantes, no comercio e de baba. Quando a pandemia chegou, em 2020, ela tinha uma loja na Feira dos Goianos. “Um dia passei com febre e muita dor. Chamaram um Uber e, quando cheguei em casa, nao conseguia botar meus pes no chao. Meus filhos me carregaram para a cama e la fiquei por dois anos. Meu cabelo caiu, eu nao comia, nao tomava banho, fiquei com 23 kg tendo 1,65 m. Em varias ocasioes, nao havia um caroco de arroz para eu cozinhar”, relembra.



Mesmo medicada, o estado de saude de Marilucia preocupava toda a familia. Nesse periodo, ela morava em Aguas Lindas de Goias e uma irma decidiu traze-la para o Setor O, em Ceilandia. Aluguel, medicamentos, comida, gas para tudo isso, ela dependia da solidariedade de conhecidos e desconhecidos. Se recusava a sair de casa. Nao se olhava no espelho. Tinha vergonha da mulher franzina que se tornara.



Um dia, Marileide, irma mais nova dela, a matriculou num curso de costura na Ascap, Acao Social Caminheiros de Antonio de Padua, entidade sem fins lucrativos que atende a comunidade carente de Ceilandia. “Todos os dias, ela e meus filhos ficavam na esquina ate eu chegar na Ascap. E morria de vergonha das pessoas me olharem. Eu nao sabia enfiar uma agulha na maquina. E quando nao conseguia, chorava”, conta.



Marilucia diz ter sido tao bem acolhida, que a partir da terceira semana, nao queria mais sair da Ascap e pedia para ficar nos dois turnos. Ali, recebia amparo emocional, material e aprendia uma nova profissao. Pouco mais de um ano apos ser atendida pela entidade, a agora costureira sabe ajustar roupas, fazer bainha e tapete. A maquina que trabalha foi uma doacao. A renda melhorou. O dinheiro obtido com a nova profissao complementa o beneficio do Bolsa Familia no valor de R$600. O filho mais velho, Erick, 24 anos, ja e casado e entrega para a mae o tiquete alimentacao que recebe da empresa. Luis Fellype, 21 anos, faz estagio em uma clinica medica. E Erika, de 18, terminou o ensino medio este ano e planeja fazer faculdade de administracao ou psicologia.



Com os filhos se encaminhando na vida, Marilucia, que e mae solo e passou quase tres anos sem qualquer renda, se orgulha de conseguir fazer economia para realizar dois grandes sonhos. “Todo mes tiro R$10 das minhas costuras e coloco numa poupanca para eu comprar uma maquina de costura nova. E, se Deus quiser, vou ganhar dinheiro suficiente para nao precisar mais do Bolsa Familia e, assim, abrir vaga para outra pessoa”. Emocionada, a costureira diz que se olha hoje no espelho e pensa: “Eu sou um milagre!”. E parte desse milagre ela atribui a familia, aos conhecidos e desconhecidos que a amparam e, em especial, a quatro profissionais da Ascap: Tia Rosane, Suzi, Catarina e Robervaldo, o anjo que a socorre toda vez que a maquina de costura pifa.



Moradia digna

Adriana Alves da Silva, 29 anos, nao sonha apenas por si, mas por toda uma comunidade negligenciada pelas autoridades. Seu sonho e, na verdade, a garantia do direito fundamental a moradia digna, assegurado pelo artigo 6º da Constituicao Federal. Moradora de Santa Luzia, uma ocupacao localizada na Estrutural, Adriana diz que, se pudesse fazer um pedido ao bom velhinho, seria por melhorias para o local.



“O que falta aqui e estrutura. O calcamento e o principal problema. Vivemos em meio a lama, e minha mae, que tem dificuldades de locomocao, muitas vezes nao consegue nem ir ao medico porque nao consegue andar nesse barro. O saneamento basico tambem e uma questao critica. O esgoto atrai ratos, que invadem as casas, e, quando chove, tudo fica alagado, com a agua chegando ate a altura da perna. Ja vi muitas pessoas adoecerem por causa da agua contaminada”, relata Adriana.



Ela veio do Nordeste com os pais, irmaos e sobrinhos ha 18 anos. No inicio, a familia morou de aluguel em diferentes locais na Estrutural ate descobrir a ocupacao de Santa Luzia, ha dez anos, onde passaram a viver. “As pessoas precisam entender que quem sai do aluguel para morar aqui e porque nao tem outra opcao. Passamos muitos anos pagando aluguel — dinheiro que nao volta —, ate que decidimos construir uma casa de madeira aqui. Na comunidade as pessoas estao tentando sobreviver, o governo precisa nos enxergar”, afirma com firmeza.



Segundo Adriana, a presenca dos politicos na regiao se resume a interesses eleitoreiros. “Na epoca das eleicoes, eles aparecem em massa, fazem carreatas, prometem mudancas. Mas, no fim, as unicas melhorias que tivemos aqui foram feitas pelos proprios moradores, que construiram suas casas e algumas calcadas por conta propria”, conclui.