Não há Cerrado sem água
REUBER ALBUQUERQUE BRANDAO — Departamento de Engenharia Florestal, Universidade de Brasilia (UnB), membro da Rede Biota Cerrado e da Rede de Especialistas emConservacao da Natureza da Fundacao Grupo Boticario
Quando falamos sobre "biomas" estamos nos referindo a um espaco biofisico especifico. Imagine que cada estacao climatica no planeta seja posicionada em um grafico onde os eixos sao a temperatura anual media e a pluviosidade anual media. Independentemente se a estacao meteorologica esta em Manaus ou no Congo, seus dados irao posicionar essas estacoes muito proximamente. O mesmo ocorrera com as estacoes localizadas em savanas da Africa, da Australia ou mesmo do Brasil Central. As savanas vao se agrupar nesse grafico justamente porque existe um espaco climatico que caracteriza as savanas.
Mas uma coisa interessante sobre o Cerrado resta claro quando comparamos os seus dados climaticos com aqueles gerados na Africa ou na Australia. O Cerrado se destaca por ser a savana mais quente e chuvosa do mundo. Nenhuma outra savana do mundo tem temperaturas tao amenas no inverno e tanta agua caindo no solo com a chegada da estacao chuvosa. Apesar de fortemente concentrada em poucos meses, a pluviosidade do Cerrado se compara a pluviosidade observada em regioes do leste da Amazonia (onde a chuva e mais bem distribuida ao longo do ano).
Devido a essa notavel pluviosidade, ha autores que se referem ao Cerrado como uma savana umida hipersazonal. De fato, ha (ou ao menos, havia) muita agua nas paisagens do Cerrado. E justamente essa agua que mantem o vigor das grandes arvores dos cerrados, a beleza das longas veredas e seus majestosos buritis, o misterio das matas paludosas e o verdor das matas de galeria. Cada flor e fruto do Cerrado estao repletos de agua. E tambem essa quantidade de agua que explica a notavel diversidade de fauna do Cerrado, incluindo muitos animais sensiveis a sua ausencia, como anfibios. Ha mais anfibios na Chapada dos Veadeiros que em toda a Europa, por exemplo.
No entanto, de forma pouco intuitiva, muita gente ainda pensa no Cerrado como um ambiente arido, com a repeticao de pensamentos ultrapassados de "paisagem monotona de arvores tortuosas e secas". Ha muita agua no Cerrado. Nos rios, nas nascentes, nas veredas, nos aquiferos. E, justamente devido a essa pluviosidade e a agua carinhosamente acumulada no solo, que o Cerrado e conhecido como "berco das aguas" do Brasil. Muitos pensam que represas sao os mais importantes reservatorios de agua, mas a verdade e que o grande deposito de agua do Cerrado e o solo. Cada gota de agua que cai do ceu escorre ao longo das plantas e penetra no chao atraves da rede de profundas raizes que caracteriza a "floresta invertida" do Cerrado. E essa agua ocupa os espacos existentes entre as particulas do solo, formando os aquiferos que alimentam nascentes, corregos, veredas e rios. O solo absorve e aconchega a agua.
Mas essa agua, os solos profundos, os terrenos antigos e de relevo suave, permitiram, apos ajustes necessarios, o desenvolvimento assombroso do agronegocio no Cerrado. E nao ha producao sem agua. Muita agua. Um pivo central de irrigacao, com lanca de 150 metros, formando um circulo aproximado de 70 hectares, plantado com oleaginosa anual, consome por ano o mesmo que 4 mil familias. Cada pivo central consome mais agua que uma superquadra de Brasilia ou uma pequena cidade. Ha 6.700 pivos centrais no Cerrado hoje. E o numero esta aumentando.
A demanda de agua para a producao agricola, associada a notavel diminuicao da pluviosidade e aumento da temperatura decorrentes das mudancas climaticas contemporaneas, tem reduzido fortemente a quantidade de agua no Cerrado, com impactos claros na vazao dos cursos de agua. Essa reducao da forca dos rios acaba reduzindo tambem a capacidade de geracao de energia das hidroeletricas, tornando a energia mais cara.
No entanto, mais do que isso, ha notavel diminuicao da chamada superficie de agua no Cerrado. Estima-se que o Cerrado perdeu mais da metade da superficie de agua (lagos, rios, veredas) nos ultimos 65 anos. A estacao de chuvas diminuiu tambem, e a tendencia e que menos agua havera no futuro. Ja se passaram uns 30 anos desde quando comecei a estudar anfibios no Cerrado. Tenho anotacoes em minhas cadernetas de campo com coros de umas 20 especies de sapos em plena atividade em fins de setembro, em brejos que nao existem mais. Vi lagoas, veredas, pocas, nascentes desaparecerem nesses poucos anos percorrendo diferentes regioes do Cerrado. Vi ecossistemas que meus filhos jamais verao.
Hoje, 11 de setembro, Dia do Cerrado, observo um opressivo ceu cor de chumbo. Fuligem cai como flocos de neve do apocalipse. Ha fogo e fumaca. Na garganta ha engasgos, mas olhos secos nao permitem mais a umidade. Falam de fogo. Mas nao e fogo que define o Cerrado, mas a agua. Onde esta a agua?
Pensando novamente na distribuicao dos biomas da terra em relacao a temperatura e a pluviosidade das estacoes climaticas, lembro que ha claros limites biofisicos para a existencia da vegetacao do nosso planeta. Lembro que desertos (e nao savanas) ocupam as porcoes continentais interioranas e na mesma latitude do Cerrado em outras partes do mundo. Lembro que a agua da Amazonia, tambem em chamas, nao viaja mais em rios voadores, agora transformados em rios de fumaca. O que aguarda o Cerrado depois da proxima curva.
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